A sucessão causa mortis, possivelmente mais do que qualquer outro instituto do direito civil, coloca em tensão valores patrimoniais e pessoais. De um lado, está a necessidade de assegurar a estabilidade das relações jurídicas, conferindo previsibilidade à transmissão do patrimônio; de outro, a autonomia da vontade dos herdeiros, muitas vezes diante de circunstâncias imprevistas. É nesse ponto que se insere uma das questões mais instigantes: quais são os limites e os efeitos da renúncia à herança?
A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial n.º 1.855.689/DF, ocorrido em maio de 2025 e relatado pelo Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, enfrentou a matéria ao decidir se o herdeiro renunciante poderia reivindicar direitos sobre bens descobertos posteriormente e submetidos à sobrepartilha.
A resposta foi negativa. O Tribunal fixou que a renúncia é ato jurídico puro, indivisível e irrevogável, alcançando inclusive bens não arrolados inicialmente, de modo que o renunciante deve ser considerado como se jamais tivesse integrado a sucessão.
O caso teve origem em habilitação de crédito em processo falimentar. Uma herdeira, que havia renunciado ao quinhão hereditário no inventário da mãe, buscava a habilitação de crédito descoberto após a partilha, submetido à sobrepartilha.
O Tribunal de Justiça do Distrito Federal, examinando o caso anteriormente, entendeu que a renúncia não deveria atingir bens até então desconhecidos, ressaltando que a escolha do herdeiro se pauta no patrimônio conhecido e que a sobrepartilha havia sido homologada por sentença transitada em julgado.
Ao julgar o recurso especial interposto pela massa falida, o STJ reformou o entendimento local. Para o relator, a herança, nos termos do artigo 91 do Código Civil, constitui universalidade de direitos. Com a morte do autor da herança, a transmissão aos herdeiros se dá de forma imediata pelo princípio da saisine (art. 1.784 do CC), podendo aceita-la (art. 1804 do CC) ou renunciá-la (art. 1.806 do CC). Assim, tanto a aceitação quanto a renúncia recaem sobre a totalidade da herança, jamais sobre bens individualizados.
A renúncia, prossegue o voto, é ato jurídico puro, não sujeito a condição, termo ou parcialidade (art. 1.808 do CC). É também irrevogável, nos termos do artigo 1.812, extinguindo integralmente o direito hereditário.
Como destacou o ministro Cueva, “perfeita a renúncia, extingue-se o direito hereditário do renunciante, o qual considera-se como se nunca tivesse existido, não lhe remanescendo nenhuma prerrogativa sobre qualquer bem do patrimônio.”.
A decisão buscou respaldo em renomada doutrina. Arnoldo Wald, apoiado em San Tiago Dantas, assinala que a aceitação nada mais é do que a negativa da renúncia: aceitar é simplesmente não repudiar, como se vê:
“A renúncia é uma faculdade do herdeiro. Ele pode renunciar, e aquilo que chamamos de aceitação nada mais é do que o não exercício da faculdade de renunciar. A aceitação é a negativa da renúncia; é a não renúncia. Seria o caso de dizermos: é a conformação do herdeiro com o efeito translativo da abertura da sucessão”. (Direito Civil – Direito das Sucessões – Vol. 6. 15ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 38)
O acórdão também se apoia na orientação de Washington de Barros Monteiro, o qual descreve a aceitação como mera ratificação dos efeitos da saisine. Carlos Roberto Gonçalves ensina que o renunciante é tratado como se jamais tivesse sido chamado à sucessão. Eduardo de Oliveira Leite, citado por Luiz Paulo Vieira de Carvalho, afirma que a renúncia apaga retroativamente qualquer vínculo do herdeiro com o espólio. E, por fim, extrai-se do julgado lição de Giovanni Ettore Nanini, para quem o direito de acolher ou rejeitar a herança é indivisível, devendo ser exercido em relação à totalidade do acervo.
Essas lições demonstram a impossibilidade de se conceber a chamada “renúncia parcial”, ainda que se trate de bens posteriormente descobertos. Inclusive, a esse propósito, destacou o eminente Relator do Recurso sob exame:
“A jurisprudência desta Corte adota esse entendimento, registrando que a renúncia e a aceitação à herança são atos jurídicos puros não sujeitos a elementos acidentais, razão pela qual não se pode aceitar ou renunciar a herança em partes, sob condição (evento futuro incerto) ou termo (evento futuro e certo), e de modo que, perfeita a renúncia, extingue-se o direito hereditário do renunciante, o qual considera-se como se nunca tivesse existido, não lhe remanescendo nenhuma prerrogativa sobre qualquer bem do patrimônio.”
A sobrepartilha, prevista no artigo 2.022 do Código Civil e no artigo 669 do CPC, tem como finalidade apenas partilhar bens litigiosos, sonegados ou supervenientemente conhecidos. Logo, tal ato não rescinde a partilha anterior, nem muito menos reabre a faculdade de renúncia, funcionando como procedimento acessório.
O acórdão, ao enfrentar a questão, foi categórico: “a sobrepartilha consiste em procedimento de partilha adicional cujo escopo é repartir os bens e dar o adequado destino dos bens dos arts. 2.022 do Código Civil de 2022 e 669 do Código de Processo Civil aos herdeiros, observando o procedimento do inventário e da partilha, na forma do art. 670 do Código de Processo Civil, mas sem rescindir ou anular a partilha já realizada, nem os atos nela praticados.”.
Outro ponto relevante foi a alegação da herdeira de que o trânsito em julgado da sobrepartilha lhe asseguraria o crédito. O C. STJ, nesse aspecto, afastou o argumento com base no artigo 506 do CPC, segundo o qual a coisa julgada só vincula as partes do processo.
Sobre tal ponderação, a permissão de questionamento pela Massa, adveio da orientação de Cândido Rangel Dinamarco, ao fixar que “indagar quem se beneficia dos efeitos da sentença e quem deve suportá-la não é o mesmo que indagar quem pode e quem não pode, no futuro, questionar os resultados de um processo, ” (Instituições estabelecidos em sentença coberta pela coisa julgada de Direito Processual Civil, vol III, 4ª ed., São Paulo: Malheiros, p. 210).
Logo, como a massa falida não participou do feito, não estaria impedida de contestar a legitimidade da renunciante no âmbito da habilitação de crédito.
Com isso, a Terceira Turma decidiu que a habilitação deveria ser extinta sem resolução do mérito, por ausência de legitimidade ativa, nos termos do artigo 485, VI, do CPC.
A decisão, portanto, tem relevância prática e teórica. Do ponto de vista da segurança jurídica, impede que a renúncia, ato solene e definitivo, seja relativizada pela descoberta de novos bens, o que poderia gerar instabilidade nas relações patrimoniais e manipulações processuais. No plano dogmático, alinha-se à compreensão da herança como universalidade e da renúncia como ato integral e irretratável.
Não se deixa de reconhecer que, em certos contextos, a rigidez da solução pode suscitar debates sob a ótica da justiça material, sobretudo em heranças complexas, em que o herdeiro desconhece a existência de determinados ativos.
Todavia, como bem observou o relator, eventuais situações de injustiça não autorizam relativizar a indivisibilidade da renúncia, devendo ser enfrentadas pela via da anulação do ato, em casos de vício de consentimento ou fraude.
A decisão também projeta efeitos em outras áreas. No âmbito falimentar, protege os credores e preserva a higidez do processo concursal, evitando que renunciantes ampliem indevidamente o rol de legitimados. No campo notarial e advocatício, reafirma a necessidade de clareza quanto ao caráter definitivo da renúncia, cujos efeitos se estendem a todo o acervo, inclusive bens não inicialmente conhecidos.
Em síntese, o julgamento do STJ reafirma a indivisibilidade e a irrevogabilidade da renúncia sucessória, consolidando-a como ato de abdicação integral, cujos efeitos se projetam sobre bens já partilhados e sobre aqueles posteriormente descobertos.
Trata-se de caso paradigmático que confere estabilidade ao sistema sucessório, resguarda terceiros de boa-fé e reforça a coerência da dogmática civilista. Portanto, ao herdeiro que renuncia, resta apenas o afastamento pleno: como bem destacou o Tribunal, é como se jamais tivesse sido chamado à sucessão.
Mathias Menna Barreto Monclaro
Comentários
Nenhuma resposta para “A Renúncia à Herança e sua Extensão a Bens Descobertos Posteriormente”
Ainda não há comentários.