Reforma do Código Civil: Alterações legislativas propostas para o instituto da Usucapião

  • Por:Cunha de Almeida
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Buscando melhor refletir as profundas mudanças sociais enfrentadas pelo Brasil, desde a edição do atual Código Civil (Lei nº 10.406 de 2002), bem como incorporar ao texto normativo os entendimentos já consolidados pela jurisprudência dos Tribunais Superiores e enunciados das Jornadas de Direito Civil, foi apresentado ao Senado anteprojeto do Novo Código Civil, o qual foi recebido e começou a tramitar perante o referido Órgão Legislativo.

Dentre as inúmeras alterações constantes no anteprojeto, a presente publicação tem como objeto analisar as alterações propostas para o instituto da Usucapião, tema de grande relevância por se tratar de um dos mecanismos mais utilizados para resolver discussões fundiárias no Brasil.

A usucapião é uma forma originária – ou derivada, porquanto na hipótese da usucapião familiar é imprescindível a existência de uma relação prévia de conjugalidade (firmada pelo casamento ou união estável) entre o usucapiente e o anterior proprietário – de aquisição do direito de propriedade, sobre um bem móvel ou imóvel em função do exercício de posse – como se proprietário fosse – ininterrupta e inconteste, por determinado lapso temporal, desde que preenchidos todos os requisitos legais e não sendo o imóvel pertencente ao Poder Público.

Atualmente, a Lei prevê 08 (oito) espécies de Usucapião, cada qual contendo requisitos específicos, sendo eles: 1) Usucapião Extraordinário de Bens Imóveis (art. 1.238, CCB); 2) Usucapião Ordinário Bens Imóveis (art. 1.242, CCB); 3) Especial Rural (art. 191, CF/88, 1.239, CCB e Estatuto da Terra Lei nº 6.969/81); 4) Especial Urbano (art. 183, CF/88 e 1.240, CCB); 5) Coletivo (art. 10 Estatuto da Cidade Lei nº10.257/2001), 6) Especial Familiar (art. 1.240 – A, CCB); 7) Usucapião Ordinário de bens móveis (art. 1.260, CCB); e 8) Usucapião Extraordinário de bens móveis (art. 1.261, CCB).  

Conforme estabelece o Código Civil de 2002, para exercer o direito de aquisição da propriedade por meio da Usucapião, é necessário o pronunciamento judicial sobre o tema, mediante o ajuizamento da competente ação judicial, que culminará em sentença declaratória, nos termos do art. 1.241 do CCB.

Contudo, com a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015, restou instituída a alteração no art. 216-A da Lei de Registro Públicos (Lei nº 6.015/1973) de modo a permitir o reconhecimento extrajudicial da Usucapião, nos termos do art. 1.071 do CPC/15. Posteriormente, o artigo 216-A do CPC sofreu algumas alterações pela Lei nº 13.465/2017, bem como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) regulamentou o procedimento extrajudicial por meio do Provimento nº 65/2017.

Sendo assim, para a uniformização dos dispositivos legais, a primeira alteração sugerida pelo anteprojeto de alteração do Código Civil, formalizada no bojo do Senado Federal, é adequar o Código Civil ao teor dos demais dispositivos legais vigentes que tratam do Procedimento da Usucapião Extrajudicial. 

As demais alterações constantes no anteprojeto, dizem respeito aos requisitos legais exigidos, limitadores ao exercício deste direito, para as espécies de Usucapião Rural, Urbano e Familiar.

No que se refere à Usucapião Especial Rural (art. 1.239, do CCB), tem-se que atualmente o Código Civil estabelece que deve ser o Usucapiente possuidor da área de terra em zona rural não superior a cinquenta hectares, por mais de 5 (cinco) anos, de forma contínua, mansa e pacífica, desde que não seja proprietário de outro imóvel, em zona urbana ou rural.

Além disso, o Autor da Usucapião deverá residir no imóvel e torná-lo produtivo por seu trabalho ou de sua família. Tal determinação, pretende assegurar o uso social da terra e garantir que pessoas sem condições financeiras possam adquirir propriedade e proporcionar a geração de subsistência familiar. Sobre esse tema, recomenda-se a leitura do artigo Usucapião rural impõe que terreno seja utilizado de forma produtiva’.

Ocorre que, na prática, a desvirtuação deste instituto fez surgir um verdadeiro mercado paralelo, impulsionado pela conhecida ‘grilagem de terras’, que consiste no “envelhecimento” de documentos forjados para obtenção da posse de determinada área de terra, exclusivamente, com o intuito de venda.

Diferentemente de outras modalidades, a espécie da Usucapião Rural não estabelece nenhuma limitação ao exercício deste direito, de modo a permitir que o Usucapiente possa adotar esse procedimento reiterada vezes, contribuindo, assim, para perpetuação da grilagem de terras.

Diante deste cenário, o anteprojeto do Senado sugere a inserção do parágrafo único, no art. 1.239, do CCB, que visa limitar o direito de aquisição da propriedade por esta modalidade, para estabelecer que este somente poderá ser exercido uma única vez.

Com relação à Usucapião Especial Urbano (art. 1.240, do CCB), o anteprojeto manteve os requisitos atualmente exigidos pelo Código Civil de 2002, – quais sejam, possuir, como sua, área urbana de até 250 m², por 05 (cinco) anos ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural – contudo, sugeriu duas alterações adjacentes.

A primeira delas diz respeito ao reconhecimento da aquisição da propriedade do imóvel urbano usucapido, e não somente do seu domínio, como atualmente dispõe o art. 1240 do CCB, buscando, assim, adequar a redação do dispositivo legal em atenção à distinção dos conceitos de propriedade e domínio.

A segunda alteração sugerida consiste em adequar a redação do §1º, do art. 1240 do CCB, de modo a excluir qualquer distinção de gênero, passando a ter a seguinte redação: “§1º O título de propriedade e a concessão de uso serão conferidos à pessoa, independentemente de gênero, sexo, ou estado civil.”

Por fim, com relação à Usucapião Familiar (art. 1.240 – A, do CCB) tem-se que esta nova modalidade foi inserida ao Código Civil de 2022 pela Lei nº 12.424/2011, em que se estabeleceu a possibilidade daquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m², cuja propriedade dividia com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

Desde então, diversas questões jurídicas foram suscitadas, forçando a doutrina e a jurisprudência a se pronunciar sobre a sua incidência nos casos de entidades familiares regidas por regimes de separação convencional de bens, prevista no art. 1.687 do Código Civil de 2002, ou, ainda, se seria possível sua incidência sobre bem particular pertencente ao cônjuge ou convivente que deixou o lar, por exemplo.

Outro ponto debatido foi com relação ao termo “abandono”, e o que poderia ser considerado como “abandono do lar”, diante das inúmeras situações fáticas que envolvem o âmbito privado da vida de um ex-casal.

Assim, considerando que grande parte das questões debatidas sobre o tema foram solucionadas pela jurisprudência pátria e pelos enunciados das Jornadas de Direito Civil[1], tem-se que as alterações sugeridas visam trazer esses entendimentos para dentro do ordenamento jurídico, consubstanciados pela inserção dos seguintes parágrafos:

§ 2º-A O prazo mencionado neste dispositivo, deve ser contado da data do fim da composse existente entre os ex-cônjuges ou os ex-conviventes.

  • 3º Presume-se como cessada a composse quando, a partir do fim da posse com intenção de dono, em conjunto, o ex-cônjuge ou ex-convivente deixa de arcar com as despesas relativas ao imóvel.
  • 4º As expressões ex-cônjuge e ex-convivente, contidas neste dispositivo, correspondem à situação fática da separação, independentemente de divórcio ou de dissolução da união estável.
  • 5º O requisito do abandono do lar deve ser interpretado como abandono voluntário da posse do imóvel, não importando em averiguação da culpa pelo fim da sociedade conjugal, do casamento ou da união estável.”

Observa-se, principalmente, que a nova redação proposta procurou albergar as entidades familiares homoafetivas, ao utilizar o termo ex-convivente, assim como proteger mulheres que abandonam a residência em razão de violência doméstica ao estabelecer que se considera abandono de lar como aquele ocorrido de forma voluntária.

Por fim, cabe destacar outra relevante alteração sugerida, com relação ao marco inicial do exercício da posse com exclusividade. A redação do §3º contém previsão expressa de que exercício da posse, com exclusividade do cônjuge remanescente no imóvel, inicia-se após o ex-convivente deixar de arcar com as despesas relativas ao imóvel.

Nesse sentido, nota-se que a natureza ad usucapionem da posse exercida por ex-convivente, já vinha sendo reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça a partir do critério de custeio. Conforme se extrai dos julgamentos dos REsp 1.375.271/SP e REsp nº 1.840.561/SP, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, entendeu que a inexistência de divisão das despesas para manutenção do imóvel e, até mesmo, dos alugueres eventualmente percebidos, por parte do ex-convivente que abandona o lar, configura a natureza ad usucapionem da posse exercida pelo ex-convivente que permanece na posse, com animus dominis, dos bens não partilhados, ora regidos pelo instituto do condomínio, podendo esta ser exercida de forma direita (moradia) ou indireta (locação). Aceca destes interessantes julgamentos, recomenda-se a leitura deste artigo.

Apesar das alterações sugeridas para o instituto da Usucapião não serem uma inovação muito significativa, ao menos quanto ao que já ocorria na prática, forçoso reconhecer que as propostas até aqui apresentadas representam avanço importante no caminho de se projetar um Código Civil que reflita, com maior proximidade, a realidade da sociedade que busca regular.

Resta a nós, operadores do direito, acompanharmos a tramitação legislativa e passar a utilizá-las tão logo entrem em vigor.

Isadora Longhini Seckler Malucelli

[1] Enunciados 498, 499, 500, 501 e 502, da V Jornada de Direito Civil; Enunciado 595 da VII Jornada de Direito Civil e Enunciado 664, da IX Jornada de Direito Civil.

Postado em: Notícias STJ

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